Doutor em Teologia Moral, Ronaldo Zacharias destaca alguns aspectos cruciais para o acompanhamento vocacional na Igreja

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São Paulo – Em uma entrevista exclusiva para o site do ITESP, o Prof. Ronaldo Zacharias, doutor em Teologia Moral e Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos, aborda questões essenciais para o acompanhamento vocacional na Igreja, especialmente no que diz respeito à vida sacerdotal e consagrada.

Zacharias destaca a preocupação com o surgimento de um “magistério paralelo” na Igreja, avesso ao Concílio Vaticano II, a ponto de comprometer a unidade e a credibilidade da Igreja. Ele ressalta a importância de uma formação atenta à capacidade relacional e oblativa dos vocacionados e às necessidades dos mais vulneráveis.

Além disso, o professor enfatiza a necessidade de lidar com questões relacionadas à sexualidade no acompanhamento vocacional e uma abordagem que integre a sexualidade no próprio projeto de vida de forma saudável e que promova o autocontrole em vista da autodoação.

Zacharias também ressalta a importância de uma mudança cultural no processo formativo para combater o narcisismo, a duplicidade de vida, a legitimação da mediocridade e o clericalismo/hierarquismo. O professor oferece contribuições valiosas para a Igreja, tais como enfrentar os desafios contemporâneos e promover uma formação vocacional comprometida com os valores do Evangelho e sensível às mudanças socioculturais e as necessidades do Povo de Deus.

O Prof. Ronaldo é Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos (Universidade de Coimbra); Doutor em Teologia Moral (Weston Jesuit School of Theology – Cambridge, USA); Coordenador da Pós-Graduação em Educação em Sexualidade (UNISAL – São Paulo). Confira a entrevista completa:

ITESP: Considerando tantos anos de experiência com a formação na Igreja, como você avalia o impacto do chamado “magistério paralelo” no acompanhamento dos vocacionados à vida sacerdotal e consagrada?

Ronaldo: Ser “paralelo”, isto é, caminhar na contramão do Concílio Vaticano II, das Conferências Episcopais Latino-Americanas e do Magistério Pontifício atual deveria ser motivo de preocupação, pois compromete a unidade da Igreja e, consequentemente, a credibilidade da sua missão.

O fato de que “gurus” midiáticos advoguem para si o “direito” a um “magistério” pelo simples fato de discordarem da caminhada feita pela Igreja também deveria ser motivo de preocupação, pois compromete a unidade do Corpo de Cristo e desse modo assumem o testemunho a ser dado ao mundo.

Muitos candidatos ao sacerdócio e à vida consagrada assumem como seus “autênticos” formadores tais gurus midiáticos e identificam-se com o modelo de Igreja proposto por eles. Isso deveria ser motivo de preocupação maior ainda, pois compromete a natureza do próprio ministério e a identidade da Igreja e, consequentemente, a ação do Espírito.

O fato de que muitos formadores, superiores e bispos se mostrem indiferentes e, não raras vezes, simpatizantes de tal “magistério paralelo” é mais do que preocupante; chega a ser escandaloso o apoio a tal “magistério” e, como consequência, a omissão em tomar as devidas atitudes em vista da qualidade da formação. Parece-me que tanto o apoio quanto a omissão escondem o desejo da volta à grande disciplina e a intenção de exorcizar uma teologia que poderia ser, de fato, libertadora.

Os efeitos de tal “magistério paralelo” são danosos porque revestem vários tipos de fundamentalismo (bíblico, dogmático, canônico, histórico, moral, litúrgico e pastoral) com o manto da fidelidade à tradição; criam um Jesus à própria imagem e semelhança para justificar o distanciamento do Jesus dos Evangelhos e “negociar” valores autenticamente evangélicos; condenam ao “fogo do inferno” uma Igreja comprometida com a vida dos “últimos”, solidária com as lutas empreendidas por aqueles que querem viver com dignidade, empenhada na transformação da realidade para que todos tenham vida em abundância.

O que mais me chama a atenção nisso tudo são três aspectos: primeiro, o quanto tais “gurus” midiáticos são autorreferenciais, autocontemplativos, narcísicos e se julgam detentores exclusivos da verdade; a impressão que se tem é de que eles são o “deus” deles mesmos; segundo, enquanto adornam o que fazem de alienada espiritualidade, vão se enriquecendo, pois tudo o que oferecem tem um preço e o lucro obtido é um dos senhores aos quais servem; terceiro, nenhum deles, que dizem amar tanto a Igreja, tem qualquer espécie de compromisso com os mais pobres e sofredores, com os mais frágeis e vulneráveis, com os últimos e sobrantes e, muito menos, com as causas sociais, deixando claro que “amar como Jesus amou” não significa nada mais do que uma bela retórica evangélica.

Ouso dizer que muitos dos formadores designados para trabalhar na fase de formação inicial dos candidatos à vida sacerdotal e consagrada não estão preparados para lidar com esse fenômeno. Eles sabem que não são os “reais” formadores. Sabem que, em sentido existencial, seus formandos encontram-se fora de casa, isto é, muito distantes daquilo que lhes é proposto como itinerário formativo, mas plena e devotamente abertos àqueles que consideram seus “verdadeiros” mestres. Mas nem sempre sabem o que fazer.

Infelizmente, estamos assistindo ao ressurgimento de um estilo de formação que busca no passado o resgate do pior de uma história que sequer foi vivida pelos interessados. Esquizofrenia total. Não é à toa que o clericalismo voltou a ser um dos problemas mais cruciais da Igreja e, portanto, da formação. O mais lamentável de tudo isso é dar-se conta do hierarquismo que favorece tal esquizofrenia. Tem razão o Papa Francisco quando convida a Igreja a combater tanto a praga e a perversão do clericalismo quanto a do hierarquismo. Como fazer isso não é uma resposta simples de ser dada. Trata-se de implantar uma nova cultura, que permeie todo o processo de formação inicial e continuada, uma cultura animada pela conformação com os sentimentos de Jesus e com as opções feitas por ele. Isso implica rever urgentemente um modelo de Igreja que não apenas se alimenta de vários fundamentalismos, mas que também é capaz de gerá-los por ter se distanciado da verdadeira videira.    

ITESP: Diante do panorama atual, marcado por mudanças sociais e culturais, como o acompanhamento vocacional pode responder mais eficazmente às necessidades dos jovens que buscam uma vida consagrada a Deus e ao serviço do seu povo?

Ronaldo: O critério por excelência de discernimento vocacional deveria ser a capacidade de a pessoa sair de si, sensibilizar-se com as necessidades de quem sofre, pôr-se a serviço de quem mais precisa. Os contextos mudam e não deveríamos nos espantar com isso. O único definitivo, o que não pode mudar, deve ser a essência de uma vida eminentemente ministerial: a capacidade relacional e oblativa de quem deseja ser expressão do amor e da misericórdia de Deus no meio do povo.

Tanto a vida sacerdotal quanto a vida consagrada são eminentemente ministeriais. A razão de ser da consagração a Deus é a radicalidade que a missão exige. E, para isso, é preciso focar no que é essencial. Não tem sentido um vocacionado que não se empenha para fazer-se próximo das pessoas e que não seja capaz de estabelecer relações de qualidade com elas. Também não tem sentido um vocacionado que considera o ministério como apêndice ou que se serve dele para autopromoção. Parece-me que se presta pouca atenção a tais aspectos no processo de discernimento e acompanhamento vocacional. São dimensões inegociáveis: capacidade relacional e capacidade oblativa.

Um outro aspecto que vale a pena considerar: não é possível querer abraçar o sacerdócio ou a vida consagrada e ser indiferente à realidade em que se vive, a começar pelo fato de a realidade ser o lugar onde Deus se manifesta e dá a conhecer a sua vontade. Mais ainda: é necessário intervir nessa realidade e torná-la mais conforme com os valores do Reino que Deus chama. Deixar-se interpelar e até mesmo indignar por aquilo que acontece é o que deveria levar a “viver como vocacionado”, isto é, continuamente “provocado” por Deus.

Se a abertura à realidade é importante, a interpretação dela é mais ainda. Mas para isso é preciso ter consciência do lugar a partir do qual essa leitura e interpretação são feitas. O lugar deve ser o seguimento radical a Jesus. No esforço para se conformar com os sentimentos dele e fazer as opções que ele fez, o vocacionado descobre que, com os olhos e o coração do Bom Pastor, ele deve procurar entender o que está acontecendo. Isso implica deixar-se conduzir pelo Espírito; é ele que faz colher na realidade os sinais da presença divina, mesmo em meio ao caos e à fragilidade. 

No processo de formação inicial, nem sempre é fácil ou viável sair dos muros dos seminários e casas de formação. Mas isso não exime ninguém – nem formadores nem formandos – de ampliar o olhar sobre a realidade e trazer para dentro de casa os apelos que dela provêm. Os anos de formação inicial não podem significar isolamento e indiferença em relação às dores e às angústias da humanidade. Afinal de contas, os anos de intensa preparação para o exercício do ministério não são uma espécie de parênteses entre os quais se coloca a vida por um determinado tempo. São anos de aquisição de competência e habilidades para poder fazer uma leitura adequada da vida das pessoas e do que acontece no mundo à luz da Palavra de Deus. É isso que se espera daqueles que desejam ser para as pessoas expressão do amor compassivo, terno e misericordioso de Deus.

ITESP: Quais são os principais desafios a serem enfrentados pelos vocacionados à vida sacerdotal e consagrada, e como o acompanhamento vocacional pode auxiliá-los a lidar com eles?

Ronaldo: Acredito que o mais importante desafio a ser assumido, hoje, no processo formativo é o de ajudar os vocacionados a compreender que a sua própria “humanidade” é o primeiro “sacramento” para aqueles que devem servir. Isso implica que devem priorizar a formação do coração. Se a formação não atingir o coração, isto é, o núcleo da vida da pessoa, o “lugar” no qual se formam as convicções que, por sua vez, iluminam os afetos, será muito difícil haver integridade, doação plena, disponibilidade para um empenho definitivo que vem da decisão de não conservar nada para si. Não é raro ver formandos perfeitamente adequados ao que deles se espera, capazes de aderir com toda inteligência a certas verdades, sem que a vida seja tocada e definida por elas. Em outras palavras, superar a mera formalidade da convenção não é tarefa fácil, mas é de fundamental importância para que os ministérios na Igreja sejam exercidos por pessoas transformadas pelos mistérios que professam.

Diante da crise de credibilidade que enfrentamos hoje, deveríamos ter a coragem de “revolucionar” o processo formativo e dizer “não” aos que são indiferentes, autorreferenciais, autocontemplativos; aos que se contentam com a mera observância das normas e com a mera aparência dos comportamentos; aos que são autoritários, arrogantes, caprichosos, distantes; aos que são carreiristas e se comportam apenas como consumidores das comunidades; aos que não têm capacidade de chorar as dores do povo sofrido; aos que não se sentem indignados com a desigualdade, injustiça, opressão, exclusão; aos que não se comprometem com a defesa dos direitos inalienáveis dos mais fracos e vulneráveis; aos que transformam o ministério num palco em que o único holofote está sobre eles; aos que apenas usam o nome de Deus para, depois, ocupar o lugar dele.

Enfim, hoje a Igreja e o mundo precisam de discípulos missionários que sejam, sobretudo, samaritanos, isto é, que façam a diferença pela coragem de colocar-se no caminho de quem mais precisa. O processo formativo deveria conduzir, naturalmente, a essa experiência. Não é o que observamos, se tivermos presentes as pragas do clericalismo e do hierarquismo que invadiram, inclusive, os seminários e as casas de formação. Enfim acredito ser essa a revolução que precisa ser provocada se quisermos que os ministérios que exercemos não caiam na insignificância e, comprometam, desse modo, o que Deus sonhou para seus filhos e filhas muito amados.    

ITESP: A sua formação desde o Mestrado até o Pós-Doutorado foi na área da sexualidade. Na sua opinião, como lidar, no processo de acompanhamento vocacional, com questões relacionadas à sexualidade, sobretudo num contexto em que os escândalos sexuais têm sido frequentemente associados à vida sacerdotal e consagrada?

Ronaldo: Os escândalos sexuais envolvendo padres e religiosos em toda a Igreja deixaram muito claro que, se quisermos superar a crise de credibilidade na qual nos encontramos, devemos enfrentar a cultura clericalista-hierarquista que favorece tais escândalos. Embora essa não seja a única razão dos escândalos na Igreja, ela é uma das principais. Trata-se de uma cultura que favorece/promove o narcisismo, a duplicidade de vida e a legitimação da mediocridade, modos de ser sustentados por uma mentalidade segundo a qual o poder “obtido” por meio da ordenação confere ao sujeito uma espécie de imunidade à sanção, imputabilidade da culpa e fuga da responsabilidade.

Infelizmente, no processo de acompanhamento vocacional, não estamos preparados para ajudar os vocacionados à vida sacerdotal e consagrada a refletir seriamente sobre a própria identidade sexual, a discernir o significado dos desejos que sentem, a ter consciência de que amam e servem como pessoas vulneráveis, a priorizar a qualidade das relações, a viver profundas experiências de autêntica amizade, a superar a dicotomia entre o que são e o que vivem como pessoas sexuais, a integrar vivência da sexualidade e projeto de vida. As causas podem ser variadas: falta de preparação para entender o contexto de onde provêm as vocações, de compreensão holística da sexualidade e de competência para ajudar os formandos a ressignificar as experiências sexuais que tiveram; dificuldade pessoal de lidar com os próprios desejos, de integrar a sexualidade no próprio projeto de vida e de manifestar o amor por meio de gestos concretos.

Os escândalos sexuais evidenciaram que, para abraçar uma vida que requer compromisso com o celibato, a continência e a castidade, é preciso ter condições objetivas para assumir o processo de integração e sublimação da sexualidade. Em outras palavras, não basta querer ser padre ou religioso; é preciso ser capaz de lidar com as renúncias que fazem parte da vida sacerdotal e consagrada no campo da sexualidade, sem se sentir frustrado, inferiorizado, desolado e, portanto, mais propício a adoecer com o tempo. Uma pessoa realizada vocacionalmente tem de ser uma pessoa realizada sexualmente. Afinal de contas, a sexualidade é um modo de ser, de se relacionar, de se comunicar e de viver o amor, razão última de toda caminhada vocacional. O amor, quando autêntico, exige, sim, autocontrole, mas em vista da autodoação.

O Prof. Ronaldo Zacharias selecionou uma série de livros de sua autoria que serviram de base para a entrevista e que são recomendados como bibliografia para um aprofundamento no tema. Essas obras estarão disponíveis a partir da próxima quinta-feira, dia 14 de março, no pórtico do ITESP.

Por: Arison Lopes, Comunicação Institucional ITESP.

Imagem: Freepik

Indicações bibliográficas

ZACHARIAS, Ronaldo. Equívocos no processo formativo. In: VEIGA, Alfredo Cesar da; ZACHARIAS, Ronaldo (orgs.). Igreja e escândalos sexuais. Por uma nova cultura formativa. São Paulo: Paulus, 2019, p. 209-252.

ZACHARIAS, Ronaldo. A ternura no processo de acolhida, acompanhamento, discernimento e integração. In: TRASFERETTI, José A.; ZACHARIAS, Ronaldo (orgs.). Ternura: uma abordagem ético-teológica. São Paulo: Paulus, 2023, p. 215-250.

ZACHARIAS, Ronaldo. Fragilidade vocacional e institucional: da crise de credibilidade à fidelidade na fragilidade. In: TRASFERETTI, José A.; MILLEN, Maria Inês de Castro; ZACHARIAS, Ronaldo (orgs.). Formação: desafios morais 2. São Paulo: Paulus, 2020, p. 73-102.

ZACHARIAS, Ronaldo. Orientação afetivo-sexual. Para além da cultura do “não pergunte, não diga”. In: TRASFERETTI, José A.; MILLEN, Maria Inês de Castro; ZACHARIAS, Ronaldo (orgs.). Formação: desafios morais. São Paulo: Paulus, 2018, p. 201-233.

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