Explorando o limite entre Humanidade e Tecnologia: A visão do Prof. Dr. Rogério Gomes, Ex-Aluno do ITESP, sobre os avanços da Neuralink

Imagem: Reprodução Internet

São Paulo – No último dia 20 de março, a Neuralink, empresa liderada por Elon Musk, protagonizou um marco histórico ao apresentar ao mundo o primeiro paciente a receber seu revolucionário implante de chip cerebral. Noland Arbaugh, um homem de 29 anos que ficou tetraplégico devido a um acidente de carro oito anos atrás, foi o escolhido para essa inovadora demonstração.

Em uma transmissão ao vivo realizada no X (antigo Twitter), Noland Arbaugh compartilhou sua experiência e demonstrou como o dispositivo implantado pela Neuralink possibilitou a ele controlar seu computador usando apenas seus pensamentos. Para Arbaugh, que não tem sensação ou movimento abaixo dos ombros, essa tecnologia representou uma verdadeira revolução em sua vida cotidiana.

A demonstração histórica realizada pela Neuralink, que permitiu a Noland controlar um computador por meio de um implante cerebral, levanta questões éticas profundas que são objeto de reflexão tanto na teologia moral quanto na bioética. Para a teologia moral, a introdução de tecnologias como essa nos desafia a pensar sobre a natureza da humanidade, a dignidade humana e os limites éticos da intervenção tecnológica no corpo humano. A teologia moral frequentemente considera as implicações éticas de novas tecnologias à luz dos princípios éticos fundamentais, como a busca pelo bem comum, o respeito pela autonomia humana e a promoção da justiça social.

Da mesma forma, a bioética analisa as implicações éticas das tecnologias médicas e biológicas, incluindo implantes cerebrais como o desenvolvido pela Neuralink. Questões como consentimento informado, equidade no acesso aos avanços tecnológicos e o potencial impacto na identidade e integridade da pessoa são fundamentais para a análise bioética desse tipo de intervenção. Além disso, a bioética também considera o impacto dessas tecnologias no contexto social e cultural mais amplo, incluindo questões relacionadas à justiça distributiva e aos direitos humanos.

Diante do avanço tecnológico que permitiu a um ser humano controlar um computador por meio de um implante cerebral, surgem questionamentos profundos do ponto de vista ético e teológico. O Prof. Dr. Pe. Rogério Gomes, Superior Geral dos Redentoristas e bioético, compartilha sua análise sobre o impacto potencial desse avanço na compreensão da natureza humana e na relação entre tecnologia e espiritualidade.

Ele destaca que, do ponto de vista teológico, a tecnologia é vista como um processo de evolução humana, refletindo a capacidade dada por Deus ao ser humano para transformar seu ambiente e viver de maneira digna. Por outro lado, questiona-se a possível autonomia excessiva do ser humano, levando-o a se distanciar de Deus e a subjugar a natureza. A relação entre tecnologia e espiritualidade também oferece uma oportunidade para uma reinterpretação dos conceitos tradicionais à luz dos novos tempos. Acompanhe a entrevista completa feita pela Comunicação do ITESP:

ITESP: Do ponto de vista ético e teológico, como avalia o impacto potencial do implante de chip cerebral, desenvolvido pela Neuralink, na compreensão da natureza humana e na relação entre tecnologia e espiritualidade?

Rogério Gomes: Compreendo este tipo de tecnologia como um processo da própria evolução humana. Desde o surgimento do ser humano na Terra, sua relação com a tecnologia é evidente. O mito de Prometeu elucida bem essa realidade. Ao roubar o fogo dos deuses, ele é castigado. O fogo, a tecnologia dos deuses, não pode ser concedido aos humanos, pois os empodera, e por isso, sua punição. No fundo, a tecnologia nasce da condição frágil do ser humano, que, a partir de sua inteligência, cria mecanismos para superá-la, transformar o entorno em que vive e usá-lo para suas próprias necessidades.

Em uma primeira abordagem, poderíamos dizer que a tecnologia nasce como prolongamento e potencialização do corpo humano, como aparato para suprir necessidades como visão, velocidade, força etc. A problemática começa a surgir sobre o uso do fogo roubado dos deuses, que faz com que a reflexão passe de uma dimensão instrumental à ética e suas implicações. E aqui vai por terra todo o discurso da chamada neutralidade científica e da própria tecnologia. A tecnologia não é apenas um conjunto de técnicas usadas por uma sociedade, mas uma mensagem cultural.

A assunção de corpos estranhos no corpo humano também não é totalmente desconhecida. Por exemplo, os xenotransplantes são técnicas de transplante de órgãos, tecidos e células animais para outro organismo, visando à substituição de partes doentes, não necessariamente precisando de um doador humano. É uma realidade já existente, mas há um longo caminho a ser trilhado. Outra realidade é a chamada de biohacking (bios+hacker), que busca reprogramar a natureza humana desde técnicas consolidadas até aquelas de implantes de chips no corpo humano, com a finalidade de potencializar o corpo humano e ampliar a longevidade humana.

O uso de chips já é comum para pets e em fazendas especializadas em animais e aves para reprodução e corte. No ser humano, o uso pode ser para armazenamento de dados sobre identidade pessoal e clínicos, substituição de cartões de crédito, substituição de chaves e crachás, acesso a computadores, vigilância etc. Toda tecnologia nasce com a promessa de revolucionar algo. No caso da tecnologia de Elon Musk, um dos usos é beneficiar pessoas com lesões traumáticas. Como não para por aí, certamente está o desejo de potencializar o cérebro humano para armazenar informações, criando supercérebros etc. Entre o jogo de marketing, pesquisa científica, viabilidade do produto e legislações, há um longo caminho a ser percorrido.

A relação entre tecnologia e espiritualidade pode ser verificada em três aspectos: o ser humano que continua a criação de Deus aproveitando-se da inteligência que lhe foi dada e transformando a realidade para viver dignamente; como o abandono de Deus, uma vez que o humano se afirma em sua própria capacidade de criar para submeter a natureza e destruí-la e dominar outros povos (autonomia, narcisismo, egoísmo, autoritarismo). Por fim, como oportunidade para a própria teologia e espiritualidade cristãs repensarem certos conceitos criacionistas que hoje já não se sustentam e devem ser reinterpretados à luz dos novos tempos.

ITESP: Considerando aspectos morais, quais preocupações éticas emergem ao contemplar a possibilidade de fusão entre a mente humana e a inteligência artificial? Como os princípios éticos tradicionais da bioética podem ser aplicados a esse cenário?

Rogério Gomes: Não vejo essa possibilidade de fusão entre mente humana e inteligência artificial em um curto espaço de tempo. Há que se ver o que é realidade e estratégia de mercado. Não direi que é impossível, mas a engenharia do cérebro humano é muito complexa e, apesar do vasto avanço já obtido, é um mundo sempre novo carregado com seus mistérios a serem desvendados. A inteligência artificial é ainda um campo que está em evolução; apresenta-se promissor, todavia é incipiente, pois ainda não se tem as suas reais dimensões. Fundir essas duas realidades exigirá muita pesquisa e muito avanço técnico-científico.

Poderíamos pensar, diante da possibilidade de fusão entre a mente humana e a inteligência artificial, considerando os princípios tradicionais da bioética como autonomia, não maleficência, beneficência e justiça, nesses termos de modo muito elementar, pois a questão exige reflexão muito mais aprofundada.

Antes de tudo, é preciso esclarecer os riscos e os benefícios dessa possibilidade. Os envolvidos devem ser esclarecidos acerca do impacto na própria natureza humana e dar o seu consentimento livre. Em relação à autonomia, deve-se considerar em que aspectos compromete a pessoa para que possa eleger e tomar decisões racionais e escolhas morais de acordo com sua própria liberdade; no que tange à não maleficência, se esse tipo de tecnologia e as técnicas empregadas para sua funcionalidade não causarão posteriormente sofrimento à pessoa; quanto à beneficência, obter os maiores benefícios e minimizar os riscos para a pessoa.

No âmbito da justiça, as pessoas que optam por fazer esse tipo de procedimento serão consideradas iguais ou superiores às demais? Esse tipo de tecnologia a quem beneficia? Causará exclusão das pessoas? Os profissionais envolvidos nesse campo, se a certo ponto, observam que tal tecnologia está sendo usada para determinados fins, terão direito à objeção de consciência? Como os governos estão preparados para os impactos dessa tecnologia, por exemplo, no mundo do trabalho, nas relações sociais? No âmbito da segurança digital, como será estabelecida a privacidade? Como essas tecnologias podem ser utilizadas para o controle das pessoas? Como se vê, abre uma vasta discussão no campo da aplicação da justiça e do direito. Além do já mencionado, uma releitura do princípio responsabilidade, não mais nas categorias de Hans Jonas, mas atualizadas, deve ser considerada nesse campo de reflexão e de possibilidades.

ITESP: Diante do avanço tecnológico proposto pela Neuralink, qual seria, do ponto de vista teológico, o papel da Igreja e das instituições religiosas na orientação ética e moral dos fiéis diante dessa nova fronteira da interação mente-máquina?

Rogério Gomes: O primeiro elemento é conhecer a tecnologia e o seu uso. Não é possível para a Igreja e as instituições religiosas orientarem seus fiéis se não conhecem a realidade. E aqui é fundamental a superação de preconceitos tanto no âmbito eclesiástico quanto no científico. Caso contrário, iremos incorrer nas querelas do passado que já bem conhecemos e ter um diálogo de surdos narcisistas. Atualmente, o diálogo interdisciplinar é uma oportunidade para enriquecimentos mútuos.

Uma vez conhecendo do que se trata, de modo profundo, o segundo passo é instruir as pessoas e ajudá-las a discernir. Portanto, é cada vez mais importante da parte daqueles que são líderes religiosos estudarem, formarem-se para terem know-how para ajudar na formação de consciência. Sem isso, cair-se-á no discurso do “pode” e “não pode” que não leva o ser humano a refletir sobre suas próprias ações e as consequências para si, para os outros e para as gerações futuras, considerando o princípio responsabilidade (Hans Jonas).

E por fim, ajudar as pessoas a desmistificarem certas teorias conspiratórias de seres de outro mundo que nos controlam, bem como da sci-fi, mas ajudar as pessoas a compreenderem que o uso da tecnologia sem nenhuma ética pode ser instrumental de controle usado por governos, empresas e sujeitos particulares para controle e que elas podem se proteger desde o esclarecimento.

ITESP: Considerando o papel da teologia na formação moral, como os líderes religiosos podem orientar os fiéis a discernir os limites éticos e morais na adoção de tecnologias que interfiram diretamente na mente humana, como o chip cerebral da Neuralink?

Rogério Gomes: O Vaticano II nos insiste na leitura dos sinais dos tempos. Também é importante considerar os tempos dos sinais. Por isso, insisto que os líderes religiosos têm que se formar e continuar se atualizando se querem prestar um bom serviço aos seus grupos de pertença. A partir da pesquisa teológica, pode-se oferecer instrumentais para refletir sobre temas como a Criação, Evolução, conceito de natureza, lei natural, agir humano, responsabilidade, justiça social, só para mencionar alguns. Isso exige uma teologia cada vez mais engajada no diálogo com outras áreas do conhecimento: filosofia, sociologia, psicologia, educação, direito, economia, ecologia, ética, bioética e moral.

No conjunto da reflexão, o conceito de interferência deve ser considerado. Ainda é muito cedo para dizer sobre as possíveis interferências. Implantar um chip já é uma interferência, pois se trata de um corpo estranho inserido no corpo humano. Interferências que descaracterizam o humano? Mecanismos que possibilitem controlar externamente a mente humana, de modo que o indivíduo perca a sua liberdade e autonomia? Por isso, é importante uma teologia que se ponha em caminho, sem perder a sua identidade, mas que acompanhe o processo evolutivo humano e ajude no discernimento de qual o melhor caminho a ser trilhado.

Por fim, é importante considerar que esses novos desdobramentos do mundo tecno-científico afetarão cada vez mais a política, a economia, as relações sociais, o conceito de natureza humana e a percepção da própria vida enquanto existência e realidade a ser manipulada.

Em suma, a discussão sobre os avanços tecnológicos e suas implicações éticas e teológicas é crucial não apenas para a academia, mas também para toda a sociedade. Especialmente no campo da teologia, onde as reflexões sobre a natureza humana, a ética e a relação com a tecnologia são fundamentais, é essencial levantar questões como a fusão mente-máquina e o impacto das inovações na compreensão da espiritualidade. Além disso, ao considerar que o Prof. Dr. Pe. Rogério Gomes é um ex-aluno do ITESP, ressalta-se a relevância de abordar esses temas dentro da própria comunidade acadêmica, conectando a formação recebida na instituição com os desafios contemporâneos enfrentados pela sociedade.

Por: Arison Lopes, Comunicação Institucional ITESP

Imagem: Reprodução Internet

Abrir Chat
Fale conosco no WhatsApp
Ola, precisa de ajuda?