Teologia Moral e os Desafios Éticos dos Deepfakes: Reflexões do Prof. Thales Martins dos Santos

Imagem: Comunicação ITESP

São Paulo – Navegando pelas águas turbulentas da era digital, onde a verdade muitas vezes se dissipa entre imagens manipuladas e informações distorcidas, a Teologia Moral emerge como uma bússola essencial para navegar pelos complexos dilemas éticos dos deepfakes. Sob a perspicaz orientação do Prof. Thales Martins dos Santos, mestre em Ciências da Religião e membro ativo da Sociedade Brasileira de Teologia Moral, adentramos ao cerne dessas reflexões, que prometem lançar luz sobre as questões morais prementes de nosso tempo.

Em um mundo marcado por polarizações políticas e disputas de poder, os deepfakes representam uma ameaça à integridade do processo democrático, potencialmente distorcendo a verdade e influenciando os resultados das eleições. Diante dessa realidade, a Teologia Moral se apresenta como uma poderosa aliada na promoção de uma cultura de transparência e responsabilidade. Para o Prof. Thales, a ética cristã, centrada na figura de Jesus de Nazaré, convoca os indivíduos a defenderem o valor absoluto da pessoa humana, especialmente dos mais vulneráveis, contrapondo-se às manipulações que visam apenas o poder.

Além disso, em um contexto cada vez mais permeado pela tecnologia, a Teologia Moral busca orientar os indivíduos a utilizar os recursos tecnológicos de maneira ética e responsável. Ao mesmo tempo se propõe a incentivar a adoção de práticas responsáveis de compartilhamento de informações, conscientizando sobre os riscos associados aos deepfakes e destacando a importância da segurança digital. Acompanhe a entrevista completa do Prof. Thales Martins dos Santos para a Comunicação do ITESP:

ITESP: Diante do cenário político atual, marcado por polarizações e disputas de poder, como a Teologia Moral pode contribuir para promover uma cultura de integridade e transparência nas eleições, considerando os desafios éticos trazidos pelos deepfakes, que podem distorcer a verdade e influenciar o resultado do processo democrático?

Thales: Entre tantas questões e provocações contemporâneas, algumas implicam firmemente em um (re)posicionamento da Teologia Moral na sociedade. Neste sentido, considero que a Teologia, em si, tem a tarefa hermenêutica de elucidar as diferentes narrativas que compõem o social. Por sua vez, a caracterização e especificação da Teologia, a partir do campo epistemológico da moralidade, necessita de um recorte para a análise que, embora compreenda particularidades quanto ao seu objeto de estudo – a pessoa humana –, não exclui, obviamente, as demais dimensões históricas que compõem as narrativas socioculturais. É certo que a Teologia Moral pensa a “existência da pessoa” a partir de todas as suas realidades e dimensões que não são sobrepostas ao humano, mas que o integram. Dito isto, consideramos que, sob a ótica da Teologia Moral, promover uma cultura de integridade requer, fundamentalmente, pensar o ser humano e a sua maneira de ser e estar no mundo a partir de referenciais valorativos que, por sua vez, para a ética cristã, concretizam-se na referência a Jesus de Nazaré. O ser e o agir de Jesus de Nazaré não estão dissociados, mas, justamente, integrados em sua pessoa. Neste sentido, a ética cristã constitui a essência de toda moralidade, pensada não sob o ponto de vista da lei, mas da responsabilidade. Por conseguinte, essa responsabilidade implica um dever ético de defesa do valor absoluto da pessoa humana, preferencialmente dos mais fracos (justamente contraposto às disputas de poder). A partir dessa atitude ética, toda ação que se constitua uma violação aos direitos humanos e, por sua vez, um atentado à dignidade humana, deve ser condenada moralmente. Nesse cenário, encontramos as diversas manipulações de narrativas que têm, por intenção, agredir e violar a dignidade humana, priorizando a busca do poder. Podemos citar, como exemplo, discursos de ódios defendidos em nome da livre expressão.

ITESP: Num mundo cada vez mais permeado pela tecnologia, como a Teologia Moral pode orientar os indivíduos e a sociedade a utilizar os recursos tecnológicos de maneira ética e responsável, respeitando a dignidade humana e promovendo a busca pela verdade, especialmente diante da ameaça representada pelos deepfakes?

Thales: Parece-me que estamos, novamente, diante da pergunta: “o que é a verdade?”. Vivemos num confronto de narrativas, discursos e atores sociais e políticos que buscam nos convencer com a “sua” verdade. Para a Teologia Moral, uma é a verdade: Jesus Cristo (Jo 14,6). Jesus se apresenta como caminho, verdade e vida. É importante perceber que a verdade cristã está vinculada ao caminho discipular que se realiza historicamente no decorrer da vida de Jesus. É fato que Jesus não lidou com conflitos tecnológicos; no entanto, esses conflitos são consequências de dilemas morais mais profundos e existentes desde outrora, a saber: a violação da dignidade humana, a exclusão social, a manipulação política e religiosa, entre outros. É preciso superar a tentação maniqueísta de demonizar os recursos tecnológicos como se fossem os grandes responsáveis por algo que, na realidade, está no comportamento humano, sendo eles, portanto, instrumentos de propagação de ações humanas destrutivas. É necessário olhar para o comportamento humano e, a partir dele, propor alternativas frente ao uso das ferramentas tecnológicas. Os deepfakes buscam, justamente, des-integrar a pessoa humana, dissociando-a da realidade, o que compromete o sentido e a percepção que ela tem da própria realidade em si. Sem dúvida, é uma violação incontestável ao valor da pessoa humana, uma vez que fere os princípios da responsabilidade e da alteridade. Quando citamos a pessoa de Jesus de Nazaré, nos referimos à integridade de seu existir, isto é, em seu ser não há duplicidade (hipocrisia: encenar, vestir máscaras). Não podemos viver sob aparências, numa duplicidade de vida, selecionando alguns espaços e contextos, em detrimento de outros, para agirmos a partir da proposta ética cristã. Ainda mais, não podemos customizar a ética cristã com a intenção de manipulá-la a fim de amenizar a radicalidade do seu seguimento. Promover a busca pela verdade se constitui, a partir da Teologia Moral, assumir a ética de Cristo e, para tanto, implica promover espaços de diálogo e abertura ao outro, discernimento e responsabilidade social, honestidade e integridade morais. Como consequência, respeita-se a dignidade humana, ao passo que a pessoa é valorizada em sua essência, e não mais a partir de estereótipos, mentiras e manipulações.

ITESP: Levando em conta a necessidade de proteger os direitos individuais e prevenir abusos tecnológicos, de que forma a Teologia Moral pode incentivar a adoção de práticas responsáveis de compartilhamento de informações e promover a conscientização sobre os riscos associados aos deepfakes, destacando a importância dos cuidados e da segurança digital?

Thales: É dever ético e cidadão educar para a autonomia e a responsabilidade. Diz um provérbio africano: “é necessário uma aldeia inteira para educar uma criança”. Sem dúvida, esse provérbio expressa uma sabedoria incrível, que nos permite diferentes compreensões. Além, obviamente, da necessidade de diferentes atores sociais para a educação do sujeito, atrevo-me a pensar, sob o ponto de vista científico, na necessidade das diferentes ciências e saberes para que a educação seja, em termos freireanos, libertadora. A Teologia, particularmente a Teologia Moral, nesse sentido, precisa estar em constante diálogo interdisciplinar para que possa produzir teorias de relevância eclesial e social que estejam fincadas na realidade histórica/concreta da pessoa humana. A pergunta nos faz confrontar com dois verbos importantes: proteger (os direitos individuais) e prevenir (dos abusos tecnológicos). Proteção e prevenção são verbos que denotam um exercício de cuidado, prudência e discernimento. É preciso investir em campanhas educativas que orientem acerca dos riscos sociais e políticos do compartilhamento de notícias falsas (fake news). Atualmente, o real e o virtual se confundem (com-fundir) num mesmo espaço, já não havendo mais barreiras e limites entre ambos; podemos citar, diga-se de passagem, o metaverso. No entanto, ainda que inscritos numa realidade virtual, é o humano que está por trás da máquina e, portanto, abre-se um dilema ético. O compartilhamento de informações falsas e a disseminação de ódio pelas redes sociais constituem atentados e violências que podem causar riscos à vida humana. A bioética (ética da vida), nesse sentido, pode nos fornecer importantes fundamentos para uma reflexão dialogal entre os diferentes saberes. Uma visão crítica e integrada da realidade é fundamental para o discernimento crítico dos conflitos que se apresentam ao humano, hoje. Sabemos do bombardeamento ininterrupto de (des)informações e, por isso, reforço a importância de um juízo crítico e atento, livre de pré-conceitos, mas aberto ao confronto dialético de ideias. É de extrema importância a promoção de espaços nos quais a bioética possa ser pensada e discutida sob diferentes perspectivas. Acredito que esse seja também um caminho de conscientização (vir à consciência).

ITESP: Considerando o papel da educação na formação de uma consciência ética, como a Teologia Moral pode colaborar para desenvolver uma compreensão mais profunda dos desafios morais apresentados pelos deepfakes, capacitando as pessoas a discernirem entre o que é verdadeiro e o que é manipulado, e promovendo uma cultura de responsabilidade e respeito pelos direitos humanos?

Thales: De início, penso que a Teologia tem o dever epistemológico de elaborar uma crítica às narrativas maniqueístas presentes na sociedade, as quais, por sua vez, impedem a construção de relações de diálogo e escuta. Na perspectiva maniqueísta, estamos diante do bem ou do mal, da luz ou das trevas e de tantos outros antagonismos. Isso resulta numa constante guerra não só dialética, mas também existencial: quem comigo não está, contra mim se declara. Sob esta perspectiva, não há qualquer possibilidade de reflexão crítica acerca do funcionamento das estruturas e instituições sociais. O discernimento entre o verdadeiro e o manipulado está totalmente comprometido, haja vista que dogmas são construídos para que se possa defender o próprio ponto de vista e, com isso, não admitir qualquer suspeita. É preciso descontruir essa visão dualista, para que se possa assumir uma visão integral e plural da realidade, pautada na responsabilidade pelo humano e com o humano, integrando todas as interfaces das relações sociais. Os deepfakes continuarão intocáveis em sua estrutura simbólica se permanecerem num imaginário que não seja capaz de, ao menos, considerar o outro lado como possibilidade de verdade. A discordância não constitui um problema em si; aliás, ela é essencial para o funcionamento das instituições democráticas. É a partir dessa dialética de ideias que as democracias podem se fortalecer, mas, para isso, é preciso que o outro (alteridade) seja reconhecido como portador de direitos e demandas de reconhecimento. Quando as relações escapam de uma chave maniqueísta, o outro é percebido como diferente, mas não inimigo. E, portanto, há outra possibilidade de contato que não seja a sua destruição. Torna-se possível pensá-lo apenas como não-eu, o outro.

Thales Martins dos Santos é Mestre em Ciências da Religião (UMESP), teólogo, membro do Laboratório Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL/USP) e da Sociedade Brasileira de Teologia Moral (SBTM).

Por: Arison Lopes, Comunicação Institucional ITESP

Imagem: Comunicação ITESP.

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